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2020: Fica em casa pra se salvar | 2024: Sai de casa pra se salvar.

Foto do escritor: Néktar DesignNéktar Design

Imagem do Freepik


Durante os últimos trágicos 30 dias, fiquei pensando que justo quando estávamos nos “curando” de vários traumas deixados pela pandemia de 2020, chegou mais um evento catastrófico, que fez quem mora no RS reviver vários sentimentos, já adormecidos, de 4 anos atrás.


Penso que o fator principal que nos faz relacionar os dois eventos é que a emoção central é a mesma: o medo da morte.


Ver tão próxima a possibilidade da sua morte, a dos seus entes queridos, da sua comunidade, ou até a da humanidade, nos mobiliza a repensar tudo que nos faz sentir vivos.


Mas achei que valeria levantar uma reflexão, pois percebi que os dois eventos traumáticos vividos nesse curto período de 4 anos, giraram em torno de um lugar simbólico: a casa.


Quando tudo começou em 2020, a primeira mensagem que todos se uniram para propagar foi o “Fique em Casa”. Quantos posts e pedidos fizemos para que as pessoas abrissem mão de sair de casa, de socializar, para diminuir os riscos de contaminação pelo coronavírus, e diminuir o número de mortes alarmantes do início da pandemia?


Pois nesse início de tragédia de 2024, o que todos os gaúchos propagaram foi a mensagem de “Sai de Casa” assim que sentir que existe risco da água tomar conta e te deixar numa fatídica espera por resgate em cima do telhado.


A chuva e o vírus, dois fatores que não passam de manifestações da natureza reagindo à nossa própria forma de ocupar o Planeta Terra, apesar de só parecerem os vilões, nos fizeram repensar nossa relação com um lugar que tanto representa a nossa forma de ocupar o planeta: a nossa casa.


Podemos pensar na casa como representação do nosso universo individual, onde nos definimos, nos limitamos e nos abrigamos do mundo. Desde que o homem deixou de ser nômade e passou a construir uma relação de posse de território, que entende a natureza como meio a ser explorado para não só sobreviver, mas acumular bens, a casa é onde cada um constrói, como pode, seu “mundo particular” das posses, dos objetos, das suas histórias.


Se isolar em casa deixou profundas marcas emocionais em todo o mundo que enfrentou o isolamento em uma pandemia. Pudemos perceber o quanto faz falta o convívio em grupo, mas também criamos diversas “fobias sociais”, e a casa passou a ser lugar de trabalho, a casa passou a ser Urban Jungle, a casa passou a abrigar as telas que nos conectam com o mundo lá fora e com a natureza que quase não tocamos.


No início desse ano, ainda sob efeito das discussões sobre trabalho remoto, trabalho híbrido ou volta ao presencial, sobre o novo modelo de festas nas ruas com início em horários mais cedo pra poder voltar pra casa, e sobre como o nosso impacto no meio ambiente com tanta gasolina, tanto consumo e tanta exploração dos recursos naturais vem nos levando pra um ponto de não retorno, parecia que o tal “novo normal” que tanto se falava na pandemia já estava posto. Mas parece que um “balde de água gelada” fez, quem ainda estava sob o efeito do isolamento, ter que se abrir pra rua, para aqueles que tiveram que pedir ou dar ajuda, interagir e contar com a casa dos outros, abrir o roupeiro e doar o que tem e nem usa. Foi necessário abrir espaço pra o nosso “ser social” tomar conta daquele “ser individual” que passou a amar estar dentro de casa na pandemia.



Ainda viajando no mundo das suposições, pois não sou psicóloga, nem filósofa ou estudiosa de semiótica, parece-me que a urgência de sair de casa se relaciona com a ideia de abrir mão da própria identidade, e se encontrar mais vulnerável que nunca.


A simbologia do abrigo surge como a representação de um espaço social, onde o nosso “eu individual” não pode mais se isolar pra se proteger do outro. Um microcosmo social, onde vimos união, choro, muita solidariedade, mas também abusos, roubos, e uma parcela da população com péssimas condições de vida sendo escancaradas pra gente ver. Situações invisibilizadas por quem vive na sua bela “casa”, que não tem conhecimento de que existem crianças sem acesso a sequer chuveiro com água quente, mulheres que sofrem todo tipo de violência por pessoas a sua volta, bichos em maus tratos, e isso é ainda mais chocante ao nos darmos conta que existem pessoas que chegaram a se sentir tão bem tratadas em um abrigo, por ter mais condições dignas de moradia do que em suas próprias casas.


Fotos retiradas da internet dos links abaixo:


Esses dias alguém me perguntou, “Por que tu achas que rolou tanta comoção do Brasil todo com a tragédia do RS? Por que será que se desenrolou um movimento tão grande de solidariedade onde pessoas vieram de outros estados ajudar, o número de voluntariado era tão grande que chegavam a lotar as listas de esperas pra ajudar, o número de doações foi enorme?”


E num primeiro momento eu pensei, acho que foi pela conexão das pessoas com a causa dessa tragédia, pois a “crise climática” é um problema que atingiu primeiro o RS mas vai atingir todos os lugares do mundo e as pessoas se identificam com isso pensando “os próximos podemos ser nós”, o que pode ter gerado forte empatia pelos desabrigados... Mas depois pensei: acho que a experiência da pandemia teve uma forte influência em nós, e ver alguém perder sua casa, nos fere mais do que nunca. A perda da casa que nos resguardou há tão pouco tempo do vilão que poderia nos tirar a vida, nos sensibiliza demais nesse momento.


Mais uma vez, ainda não conseguimos medir os traumas gerados pelos episódios dessas últimas 4 semanas... As marcas deixadas nos gaúchos não foram somente as que fotografamos nas paredes dos prédios e ruas, e vão demorar a cicatrizar. Mas olhando por um lado muito ingênuo e sutil, tivemos uma enxurrada de expansão do nosso “eu social” no movimento contrário ao de 4 anos atrás... Ao invés de nos isolarmos, tivemos que nos abraçar literalmente, interagir, dar pedaços da nossa própria casa pra pessoas refazerem as suas, tivemos que “a fórceps” reaprender a forma de nos salvar, não mais se isolando, mas se voluntariando, interagindo, estendendo a mão, ajudando a limpar e a reconstruir.


Fotos: Paula Langie


O complexo desenrolar entre a construção do nosso eu individual e o social, parece ser uma grande questão emocional a ser tratada nas sessões de terapia nos próximos tempos. Os abrigos ainda nem foram desfeitos, ainda há pessoas batalhando pra encontrar novos lugares pra morar, o voluntariado continua necessário e talvez tenha rolado um despertar pra necessidade que sempre existiu de ajudar quem não tem as mesmas chances de encontrar abrigo na casa de parentes ou amigos.


Mas acredito que algo em quem viveu essa experiência poderia servir de motor pra uma reconstrução ainda mais generosa... Principalmente com o meio ambiente. É mais do que hora de entendermos a simbologia da “casa” numa dimensão muito maior, a do planeta como casa, onde todos habitamos juntos e temos responsabilidades individuais e sociais de cuidar.


Gostaria muito que usássemos essa experiência para fazer do RS um exemplo de mudança real no entendimento da Terra como nossa casa, onde a nossa responsabilidade vai além das nossas 4 paredes.


Paula Langie

Diretora da Néktar

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